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O melhor e o pior, prêmiações, Kendrick Lamar e o "disco do ano"














Há algumas semanas (27 de agosto) o MC norte-americano Kendrick Lamar levou seis (de oito indicações) prêmios no VMA (Video Music Awards da MTV) pelo seu último trabalho DAMN. e embora esta seja uma grande conquista para um trabalho que é inegavelmente completo em sua execução, desde a arte das capas até os videoclipes – vide o da música HUMBLE. que foi premiado com melhor fotografia, a massiva campanha para afirmar DAMN. o disco do ano, mostra o lado industrial da música (e a arte como um todo) que tem a necessidade de classificar e categorizar obras, colocando-as como “melhor ou pior”.



Parece que estou desmerecendo o álbum do Kendrick ou ele mesmo, mas o ponto é: essa necessidade do “melhor do ano” é uma vontade dessa mesma indústria de recompensar o artista – já que o disco good kid, m.A.A.d. city ficou famoso por ter sido esnobado do Grammy em detrimento de um artista branco, leia mais. E mesmo que não; todas as pessoas que consomem arte conseguem ver que essa polarização do bom e ruim, nem sempre é algo benéfico para o artista e sua obra? Lá na terra do Tio Sam alguns outros trabalhos que também tem o mesmo esmero artístico, lírico e social saíram nos últimos meses e infelizmente estes não tiveram os mesmos holofotes que o DAMN.

O brilhante 4:44 do Jay-Z veio para mostrar um momento mais maduro do Mc, que questiona se ele é digno de tudo ao mesmo tempo que entende a importância que sua imagem tem. Lembrando que antes de ser o Jay-Z, ele precisa ser um “neguinho marrento”; com algumas faixas com a colaboração da Beyoncé nas vozes adicionais, o ritmo do rap encontra uma musicalidade que não abre mão da mensagem pela rima. Porém, diferente do álbum do Kendrick, 4:44 vem com uma estrutura mais underground que não soa nostálgica, mas que, ajuda a ilustrar essa dicotomia do velho e novo, status e honra, fama e humildade.


E ainda nos EUA tivemos outra incrível obra do Joey Bada$$, que vem assumindo uma bandeira de militância, se afirmando um herói negro. Mandando Donal Trump se foder e apontando os dedos para os verdadeiros culpados. All-Amerikkkan Bada$$ é uma obra que além de todo seu valor artístico e de produção, tem um peso social que vai do começo ao fim. Como o canal Quadro em Branco brilhantemente ilustrou, este é o trabalho de um verdadeiro herói americano. Um Capitão América de novos tempos - veja mais.
Reprodução: Genius

Todos estas obras citadas acima tem em comum a constante presença dos MCs em questões sociais, e raciais - sempre trazendo o orgulho negro em suas letras; questionando o status quo racista e a constante pressão que negros sofrem todos os dias. Essas mensagens se tornam ainda mais importantes em tempos de passeatas neonazistas nos EUA - leia mais. Mas voltando aos grandes eventos de premiação (Grammy, VMA); não é que este texto é uma carta de ódio aos sindicatos e academias responsáveis por essas cerimônias, porém um questionamento a industrialização deste - já que se pensarmos de maneira puritana, um troféu seria um reconhecimento pelo seu trabalho, olhar para a obra e ver a arte nela. E também não é que estou torcendo pro Kendrick perder [muito pelo contrário, quero ver um preto subindo no palco], mas não quero que esta seja uma vitória do ponto de vista mercadológico.

Em um cenário musical onde cada vez menos vemos obras completas sendo lançadas, não em EPs ou Singles, o impacto e a importância dessas obras não pode ser deixado de lado em detrimento do seu número de indicações. No Brasil por carecermos de uma estrutura tal qual nos EUA, as obras de rap se perdem mais ainda neste boom de lançamentos, enquetes, vídeos de "React/Análise" - estes últimos que recentemente assumiram o papel de "imprensa especializada"no país. Mesmo que não permeiem além do meio Hip-Hop, discos como o Galanga Livre de Rincon Sapiência, Heresia de Djonga, o incrível Roteiro para Aïnouz vol. III do nordestino Don L e a recente bomba Esú do Baco Exu do Blues trazem complexidade musical, cargas pesadas de lírica, questionamentos sociais e sobre a indústria musical o sistema capitalista; sobre a divindade e a humanidade, sobre a vida.

Um destaque para os dois últimos citados: Don L e Baco Exu do Blues; o primeiro com uma obra de arte que esbanja esmero. Desde uma capa introspectiva que usa a agua como catalisador das emoções que escorrem pelas nove faixas, ao silencio presente que conversa diretamente tanto com nós quanto com o próprio Don L que rima sobre o caos de uma sociedade despreocupada, a fé de antigamente que parecia confortar mais, nossa eterna necessidade de buscar estar vivo e sempre cair na ilusão de burlamos a natureza - esquecendo que ela sempre está muitos passos a nossa frente. Uma verdadeira obra que não se desfaz da mensagem em nenhum momento, sempre mantendo um ritmo lírico unico do Don L e instrumentais envolventes e muito bem produzidos - leia mais.



Enquanto isso o baiano Baco Exu do Blues veio com toda a agressividade que conhecemos em Sulicídio, com o pesado Esú, um disco que veio pronto para fazer parte desta discussão - já que o próprio Baco já disse em entrevistas que este é o "disco do ano". E aqui eu não vou dizer que o Baco está errado em dizer isso; da mesma forma que em Sulicídio o MC usava nomes de outros artistas para fazer uma crítica à indústria, quando ele afirma que seu disco é o "disco do ano", ele está novamente questionando essa mesma indústria que exige o melhor e o pior e quantifica qualidade. Mas o questionamento de Baco não fica só nesta indústria, Esú  mergulha no divino e no humano, um do lado do outro sempre se colidindo, uma vida que exige tudo do homem e esse tudo tem valor de nada no fim; a reafirmação de raízes negras que vão desde as brilhantes capas para o YouTube, as primeiras faixas do disco que trazem toda uma atmosfera afro para a música, além de sempre usar de inspirações como Nação Zumbi e Raul Seixas, deixando sempre muito claro que Baco é um MC da Bahia.
Arte da música Abre Caminho, para o YouTube/ Reprodução: YouTube

É sempre bom ver os artistas que a gente gosta ganhando premio pelas suas obras, mas o que as vezes não vemos que isto pode acabar por minar a magia da arte, que não deve ser comparada ou medida e sim apreciada pela sua verdade.

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