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Star Trek: Discovery; nerdice, cultura pop; vamos falar de racismo [de novo] e #takeaknee

[ATUALIZADO 04/09/2018]

A gigante dos esportes Nike lançou ontem (03) uma campanha publicitária com o ex-Quarterback Colin Kaepernick com a frase "Believe in something, even if it means sacrificing everything" - algo como acredite em algo, mesmo que signifique sacrificar tudo. Em 2016 o jogador foi alvo de polêmicas envolvendo seu posicionamento diante pautas como violência policial e racismo. Com isso o ex-Quarterback é a nova "cara" da campanha Just Do It da Nike em 2018; e a empresa assumiu o risco do backlash respondendo: "Essa campanha é uma compilação dos atletas que mais inspiram, que correram atrás de seus sonhos não se importando com os obstáculos ou o resultado final." - leia mais.




Star Trek: Discovery estreou na ultima segunda (25) na Netflix; e depois de algumas semanas turbulentas, não havia momento mais oportuno para nos lembrarem que ainda existe esperança. Nas ultimas semanas nos EUA durante os jogos da NFL (liga de futebol americano) alguns jogadores ajoelharam-se durante o hino nacional em protesto a violência policial e desigualdade racial no país, e embora para alguns norte-americanos - tal qual o Presidente Trump [leia mais] - essa atitude seria um ato de desrespeito à bandeira dos EUA e aos soldados que lutam pela liberdade e os ideais do país, a discussão tomou proporções maiores e levantou uma pergunta: jogadores e outras figuras publicas devem ter um posicionamento politico definido ou não?

Uma publicação compartilhada por Sonequa Martin-Green (@therealsonequa) em
A atriz Sonequa Martin-Green também protestou no dia da estreia de Star Trek: Discovery nos EUA

E antes de falar sobre a importância de tais figuras assumirem bandeiras, precisamos lembrar por que as "coisas de nerd" são tão importantes nessa sociedade atual. A série original Star Trek é de longe uma das mais importantes de televisão norte-americana; responsável pelo primeiro beijo inter-racial da história do país, por colocar uma mulher negra na posição de Tenente (uma patente alta e que ia totalmente contra a sociedade machista dos anos 60). Com roteiros que falavam sobre a exploração do desconhecido, a aceitação do diferente e sobre o equilíbrio e paz na Terra; Star Trek cativou muitos corações durante seus anos de exibição e se tornou um ícone entre a cultura pop. Agora, em 2017 a CBS nos entrega Discovery; uma série que evoca o espirito de aventura e esperança que a série original nos entregava; com uma protagonista negra, mulher e meia vulcana, Discovery conversa de novo com a sociedade atual, questionando [mesmo que sutil] o status quo da América atual. E com apenas dois episódios a atriz Sonequa Martin-Green - já conhecida dos fãs de The Walking Dead, conseguiu entregar uma personagem a altura dos antigos capitães da Frota Estelar e ainda fazer jus a Nyota Uhura - a personagem mais importante da saga. Mesmo com apenas dois episódios já podemos ver que o mundo precisava de Star Trek mais uma vez; que nossa sociedade precisa ser lembrada que existe esperança e que a paz não é utopia.

A cultura pop vez ou outra pega assuntos que permeiam em esferas sociais e retratam de maneira a questionar padrões. Exemplos clássicos são as histórias dos X-Men que faziam uma referencia clara à luta pela igualdade dos negros - que mais tarde assumiria um papel ainda maior, falando sobre homossexualidade e xenofobia. E seja nas páginas da Marvel ou da DC Comics, a importância de levar esses questionamentos para diferentes pessoas é tamanha e posso afirmar que sem estes nomes provavelmente este texto aqui nem seria cogitado por mim; hoje com uma massificação da cultura pop e com filmes como Vingadores e Mulher-Maravilha fazendo quase bilhões de dólares na bilheteria, a importância social que a nerdice assume é cada dia maior; sendo responsável por levar senso critico a cada vez mais adolescentes e crianças do mundo - ainda que de maneira superficial, tais filmes despertam a curiosidade. Nas histórias em quadrinhos, tanto a Marvel quanto a DC Comics já se aprofundaram em temas mais densos e que conversam diretamente com a sociedade: em Guerra Civil de 2007 escrita por Mark Millar, a crítica ao Ato Patriota (USA Patriot Act) que dava ao governo um controle de vigilância e espionagem muito grande, colocando a definição de liberdade e privacidade em cheque. Na DC histórias clássicas como V de Vingança de Alan Moore fala sobre governos totalitários e a anarquia, o questionamento e como ele se transforma em revolução.


Guerra Civil da Marvel e V de Vingança da DC Comics
Mas voltando à NFL; desde que o jogador Colin Kaepernick (quarterback do San Francisco 49ers) assumiu uma postura de protestar contra o sistema racista dos EUA - no dia 1º de Setembro de 2016; onde jovens negros são mortos simplesmente por serem negros; o debate esquentou e muitos questionam o fato de jogadores levantarem questões politicas - argumentando que eles são pagos para jogarem. E não precisamos nem fazer muito esforço para imaginar porque é tão "nocivo" que jogadores do esporte mais assistido do país não tenham engajamento social. Porém, assim como na cultura pop o esporte assume forma de união de várias culturas e questionamentos sobre o racismo permearem essas esferas ajuda a acabar com a mística de que não se pode falar de racismo - um dos sintomas para agravar o racismo institucional; e assim, nos últimos jogos da liga, muitos jogadores também aderiram o protesto iniciado por Kaepernick e também se ajoelharam durante o hino nacional dos EUA - o que gerou a hashtag Take a Knee (ou ajoelhar-se). E esta posição dos jogadores da NFL assumiu proporções bem maiores e jogadores como LeBron James e Stephen Curry da NBA (liga de basquete) também tomaram partido neste protesto, dando mais força ainda para o movimento; e como visto acima, Sonequa Martin-Green de Star Trek: Discovery também ajoelhou-se no ultimo domingo (durante a exibição do Sunday Night Football, principal jogo do domingo); quebrando tabus dentro e fora do universo da série.

E enquanto nos EUA o país passa por um momento de lutas raciais muito forte, no Brasil ainda estamos lutando - e devagar - contra o sistema racista. Também no ultimo domingo (24) a Folha de S. Paulo denunciou o uso indevido de cotas raciais para vagas de medicina na UFMG - leia mais; trazendo a tona a discussão sobre identidade racial. Mas quando esse tema é discutido no Brasil, os argumentos sobre a miscigenação do país estão entre os mais falados; porém: até que ponto esse argumento faz com que milhares de jovens negros sejam marginalizados? E por mais que o Brasil seja de fato um país multicultural, a marginalização dos negros é muito presente em toda parte; como a aluna de medicina da UFMG Agatha Oluwakemi coloca: "É muito difícil entrar no curso de medicina. Fiz três anos de cursinho e não vou julgar ninguém. O que barra uma a não se autodeclarar negra é sua ética." A aluna também questiona este argumento da formação do país dizendo: "Quem são os seguidos pelos seguranças no shopping? Quem é inferiorizado pelo tipo de seu cabelo ou pelo formato do nariz? É preciso ser mais criterioso, para além de uma declaração."

Se pensarmos que num país onde o Rafael Braga foi preso por carregar duas garrafas de Pinho Sol; falar que o sistema de cotas que gera o racismo, ou pior, colocar um band-aid em cima do racismo e dizer que ele está curado no país, chega a soar como uma piada de [muito] mal gosto. Segundo dados publicados pela BBC em matéria no dia 6 de junho de 2016, no Brasil morre um jovem negro a cada 23 minutos; a pesquisa ainda aponta que ao todo cerca de 23.100 jovens negros de 15 a 29 anos são assassinados no país, esse numero representa 77% do total de mais de 30 mil mortes de jovens nesta faixa etária. E voltando para as cotas raciais e universidades; o acesso ao ensino superior para jovens negros já muito limitado, mesmo que pesquisas apontem o crescimento de jovens negros nas universidades, este numero ainda é muito pequeno - e ainda com o fim de certas politicas de incentivo do governo para universidades como o FiES acabam por diminuir ainda mais o acesso de jovens negros de periferia. Porém o sistema de cotas, é muito criticado por "promover o racismo", e de cara já refutando esse argumento, como já foi dito acima e também num texto mais antigo sobre Cara Gente Branca o racismo institucional acaba por criar um ambiente onde não há incentivos para o negro, o que gera uma marginalização destes que começam a serem tratados como um pedaço à parte da sociedade.

Mas voltando à cultura pop, não fica difícil ver o porquê é tão importante que os jovens vejam heróis que represente-os, que lutem pelos mesmos ideias que eles e o principal: alguém com quem possam se relacionar. E falando novamente de Star Trek: Discovery, assim como na série original a Tenente Uhura quebrou vários tabus, na nova versão Michael Burnham (Sonequa Martin-Green) também já chega com o pé na porta. Na série a personagem é a primeira da raça humana a ser aceita na Academia de Vulcano; uma mulher negra que é vista como uma das mentes mais brilhantes da humanidade. E assim como é tão importante que a Mulher-Maravilha seja a heroína para inspirar crianças, Michael é a personagem que todos os negros podem se espelhar, um símbolo de inteligência, coragem e esperança. E se tiver algo para comemorar, que seja a volta de Star Trek a TV; a volta da nerdice fazendo seu papel de questionar a sociedade, de se firmar como uma expressão artística verdadeira. Mais do que nunca precisamos de mensagens diretas (como Cara Gente Branca) e também precisamos de metáforas para falar sobre o racismo no mundo; a essência de Star Trek sempre foi a busca pelo conhecimento e a unificação dos povos em prol da paz, e se nos anos 1960 a TV norte-americana colocou no mesmo elenco uma negra, um japonês e um russo ao lado de um nipo-americano; em 2017 podemos esperar muito mais esperança e amor de Star Trek: Discovery.

Reprodução: CBS



















Falar de racismo no Brasil é complicado, ainda nos é vendido que este é um problema que não existe. E quando o assunto toma proporções maiores que as esferas politicas fica difícil fugir dele; assim como no começo do ano a Netflix deu um passo à vanguarda com Cara Gente Branca, Discovery também chega com a mesma importância. Uma série que respeita todo o legado que o nome Star Trek significa e ao mesmo tempo consegue conversar com a sociedade atual, questionando comportamentos racistas e machistas. Com uma protagonista carismática que, dentro e fora das telas, sabe qual sua importância e toma partido frente aos problemas raciais. Assim como no futebol americano o ato de ajoelhar-se significa uma pausa do relógio do jogo ou um pedido de fair catch; os protestos dos jogadores e também de várias outras figuras nos EUA é um pedido para que a policia e os governantes zerem o relógio do racismo.

Fontes:

BBC

ESPN Brasil

Folha de S. Paulo

Quebrando o Tabu

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