Pular para o conteúdo principal

Brasil: o abismo racial nos olhos da literatura

[ATUALIZADO 31/08/2018]

Na última quinta (30) a Academia Brasileira de Letras elegeu o escritor Cacá Diegues para ocupar a cadeira número 7. Dentre os concorrentes, a vencedora do Jabuti Conceição Evaristo (a única escritora negra entre os indicados a cadeira) - leia mais. A escolha foi vista por muitos como mais um reflexo de mecanismos que propagam o racismo. Dentre as opiniões, a Mestre em Filosofia Política e colunista da revista Elle Brasil Djamila Ribeiro postou em seu Facebook:




Recentemente li um texto muito pertinente sobre a obra e vida de Monteiro Lobato; e neste fica claro todo o lado racista do autor - tanto nas famosas histórias do Sítio do Pica-Pau Amarelo como em sua vida pessoal. A relação que de Lobato com a Ku-Klux-Klan - leia mais. Após alguns bons minutos para digerir toda uma infância que foi moldada segundo o roteiro de um racista e depois de inúmeras conversas com a @jheysc (modelo, ativista racial e formando em Letras) a necessidade desse texto se tornou cada vez maior. Desde a primeira conversa até este momento da escrita, foram dias e dias de reflexões, bloqueios criativos e inseguranças e crises de ansiedade, o momento para termina-lo finalmente chegou.


Apontar quais livros e quais trechos destes são racistas seria [e é] muito simples e básico; quando vamos falar do abismo racial que do Brasil não basta apenas olhar para os dizeres e citações destas obras. Para de fato discorrer sobre o assunto é necessário mais que referencias a páginas de histórias infantis e olhar a fundo o que quase 400 anos de escravidão causaram na sociedade brasileira.

A arte tem papel importante nas relações humanas por popularizar e por eternizar ações, comportamentos e estilos de vida. Nos quadrinhos, personagens como o Pantera Negra, e grandes ícones da música como Jimi Hendrix, Nina Simone etc, foram muito importantes por ilustrar de maneira representativa que negros também podem salvar o mundo e serem o herói do dia. Infelizmente o efeito cultural da arte também pode ser levado para o outro lado e talvez o maior exemplo disso na própria cultura pop é o filme que a Disney quer que você esqueça! Se por um lado temos este péssimo exemplo de eugênia racial; aqui no Brasil não é diferente. Além do já citado Sítio do Pica-Pau Amarelo, o racismo na cultura brasileira está diretamente ligado com a história da TV no país - desde os barões da TV (na grande maioria homens brancos), até a um dos maiores sucessos da TV no país; Os Trapalhões, um dos programas mais famosos dos anos 1970 também é um grande exemplo da escrita racista que paira pela arte brasileira. O personagem do Mussum (Antônio Carlos de Santana Bernardes Gomes) sempre foi escrito com base nos esteriótipos do homem negro [segundo um olhar ainda mais racista de uma sociedade do século passado] e sintetiza o olhar de menosprezo de uma sociedade que foi criada num contexto que nega o racismo ao mesmo tempo que o reforça.

E como esse "tratamento" que o negro recebe na literatura e tele dramaturgia reflete o que vivemos nas ruas? Bom; dados publicados pela Carta Capital em matéria especial do Dia da Consciência Negra em 2017 aponta que mais da metade dos brasileiros são negros ou pardos (54%). Ainda sim, jovens negros são as maiores vítimas de homicídio e violência policial no país, homens e mulheres negras são a maioria nos presídios brasileiros; e o número de crimes relacionados ao gênero (feminicídio) aumentou entre as mulheres negras, enquanto diminuiu entre mulheres brancas entre os anos de 2003 e 2013. Para piorar a situação; quando falamos de representatividade cultural dos negros, apenas 10% dos livros publicados entre 1965 e 2014 foram escritos por autores negros. Não há registros de mulheres negras diretoras no Brasil e o numero de atores e atrizes negros em papeis importantes não passa dos 4%, destes, 31% são personagens associados a criminalidade e a pobreza.

Cidade de Deus

Como já foi debatido em um texto anterior, [e também citado acima]. Quando nos deparamos com um tamanho abismo racial como este - tratando de um país onde negros NÃO SÃO MINORIA, estes dados soam ainda mais bizarros; e nos ajudam a entender como funciona o racismo no Brasil. Enquanto nos EUA, o racismo acontece de maneira aberta (vide o presidente); aqui na terra do samba (o que já é um esteriótipo ligado a marginalização da população negra e pobre) toda a questão racial é algo velado tanto pela sociedade, quanto pelos políticos - desde Dilma que afirmava ter botado fim no racismo no Brasil, até Jair Bolsonaro e suas falacias racistas no Roda Viva. A "luta pela representatividade", algo que [não começou] nos EUA, mas tomou força nos últimos anos com filmes como Pantera Negra, os incríveis álbuns DAMN do Kendrick Lamar e agora em 2018 Everything is Love dos Carters (Beyoncé e Jay-Z), e no Brasil artistas como IZA, Rincon Sapiência, Bk, Drik Barbosa entre outros são os grandes ícones da música brasileira e além de sua descendência afro-americana, tem carisma e intelecto para levantar bandeiras e para serem exemplos de uma nova geração.

Falar de racismo no Brasil sempre foi difícil, é uma ferida que muitos ainda não estão prontos para destampar; porém este é o momento para fazer a diferença (sim, durante o ano político). Conhecer nossa história é o primeiro passo para isso; mas não podemos [e nem devemos] focar exclusivamente nos quase 400 anos de racismo, no sofrimento.  Com movimentos como o Strong Black Lead (encabeçado pela Netflix), a nova safra de artistas negros que estão surgindo no país na música, na TV e também na literatura. Não é o momento para colocar fogo nos livros do Monteiro Lobato - alá Fahrenheit 451- porém devemos aprender a olhar tais obras com um olhar mais crítico, e reconhecer que o que era dito ao Mussum, ou que a Tia Nastácia passava naquele Sítio eram situações que ajudaram a reforçar um racismo institucional na sociedade brasileira.

Abaixo tem alguns links de textos e recomendações de obras, páginas e pessoas a seguir:

Texto sobre a obra de Monteiro Lobato:

Pagina de Strong Black Lead no Facebook:

Texto sobre a HQ Cumbe do autor Marcelo D’Salete:






Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Insecure; [homem] falar de mansplaining é mansplaining ? e Lugar de Fala: parte #01

Escrito em 28 de setembro de 2018 Se este texto vai ser mais um exemplo de  mansplaining eu não sei  - e nem quero que seja; embora o título de a entender tal coisa. Já me compliquei na primeira linha, e agora? Devo explicar o que é  mansplaining ou este ato de explicar seria já um  mansplaining ; o paradoxo é quase que impossível de fugir ... mas o homem não pode aprender com a mulher? [e este mesmo, quando se recusa a se abrir e entender o mundo para além de seu p*nto, é realmente um escroto ou apenas uma pessoa afogada em insegurança ? [ESTE TEXTO NÃO TEM SPOILERS DA SÉRIE] Reprodução: HBO Agora que a deixa para falar sobre Insecure  já tá aí, vamos primeiro contextualizar onde essa série existe: É uma produção original da HBO, criada, produzida e estrelada por Issa Rae. A série é uma comédia de erros que lembra muito outras produções do canal como Girls  e Sexy in the City  - tanto pelo elenco feminino, quanto pelos problemas que as amigas da série passam (relacioname

Um texto sobre roupas.

É difícil afirmar com exatidão quando as vestimentas deixaram de ser apenas "ferramentas" para se tornar manifestações de identidade e de arte. Mas o que se pode ver hoje é que as roupas e o conceito abstrato do que é moda  é parte importante na construção de uma imagem dentro de um coletivo - enquanto uma identidade pessoal ou como manifestação de dogmas e emoções; levando mais a fundo as vestimentas de um individuo também funciona como um "mecanismo de julgamento" em muitos casos. Já foi discutido por aqui em um texto antigo sobre como existe uma, [quase que] urgência em rotular, em colocar em grupos específicos e restritos a características superficiais e muitas vezes misóginas/preconceituosas. Bom, já não é novidade pra ninguém que uma mulher sair na rua de short é um chamado aos mais variados julgamentos, quando se leva isso para outros movimentos e contextos sociais diferentes tais julgamentos tomam forma de ações preconceituosas que propagam uma cultura de s